Ayaan Hirsi Ali é uma mulher de sorte. Pelo menos, é o que ela diz no epílogo de Infiel, (tradução de Luiz A. de Araújo; Companhia das Letras; 512 páginas; 49 reais), seu livro de memórias. Não deixa de ser uma declaração surpreendente: nas páginas que antecedem o capítulo final, Ayaan passa pela excisão do clitóris, em uma operação bárbara, realizada sem anestesia, e é espancada até ter a cabeça fraturada por um professor da escola islâmica - para ficar apenas com os infortúnios da infância. Crítica feroz da opressão das mulheres sob o Islã, a ex-parlamentar holandesa de origem africana detesta a insinuação de que seus ataques são resultados do ressentimento por seu passado "traumático". "Quero ser julgada pela legitimidade dos meus argumentos, não como uma vítima", escreve ela. Não resta dúvida, porém, de que sua biografia empresta força ao seu argumento. Ayaan diz basicamente que o mundo islâmico em geral está em descompasso com a modernidade e que as sociedades ocidentais oferecem mais liberdade e segurança, sobretudo para as mulheres. Nascida na Somália e criada por uma família muçulmana, Ayaan tem autoridade da experiência para falar desses temas. A grande sorte de Ayaan foi sua fuga para a Holanda, país que lhe deu cidadania e onde ela fez uma breve e controversa carreira política, como parlamentar pelo Partido Liberal. Na Holanda, ela colaborou com o cineasta Theo Van Gogh na realização do curta-metragem Submissão, que inflamou os fundamentalistas por sua denúncia da condição feminina sob o Islâ - e pelo sacrilégio de mostrar trechos do Corão, em árabe, impressos sobre a pele nua de uma mulher espancada. "A mutilação dos órgãos genitais da mulher é anterior ao Islã. Nem todos os muçulmanos adotam essa prática, e alguns povos que a adotam não professam o islamismo. Mas, na Somália, o procedimento sempre se justifica em nome do Islã. (...) O homem aproximou a tesoura. Uma dor aguda se espalhou no meu sexo, uma dor indescritível, e soltei um berro. Então veio a sutura, a agulha comprida, rombuda, os meus gritos desesperados de protesto, as palavras de conforto e encorajamento de vovó: ´É só uma vez na vida, Ayaan. Está quase acabando´. Ao terminar a costura, o homem cortou a linha com os dentes. É só disso que lembro". Trecho de Infiel.
Fonte: Veja
Fonte: Veja
Texto: Jerônimo Teixeira
2 comentários:
Este post me lembra o filme DÚNIA. Uma co-produção franco-canadiana-libanesa realizada por Jocelyne Saab.
É um filme sobre a feminilidade no Oriente, a complexidade da relação homem-mulher, o desejo e a impossibilidade de atingir prazer por motivo da excisão do clitorís.
Recomendo.
Boa e obrigado pela dica, vou assistir o filme.
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